Poema do homem-rã Sou feliz por ter nascido no tempo dos homens-rãs que descem ao mar perdido na doçura das manhãs. Mergulham, imponderáveis, por entre as águas tranquilas, enquanto singram, em filas, peixinhos de cores amáveis. Vão e vêm, serpenteiam, em compassos de ballet. Seus lentos gestos penteiam madeixas que ninguém vê. Com barbatanas calçadas e pulmões a tiracolo, roçam-se os homens no solo sob um céu de águas paradas. Sob o luminoso feixe correm de um lado para outro, montam no lombo de um peixe como no dorso de um potro. Onde as sereias de espuma? Tritões escorrendo babugem? E os monstros cor de ferrugem rolando trovões na bruma? Eu sou o homem. O Homem. Desço ao mar e subo ao céu. Não há temores que me domem É tudo meu, tudo meu. António Gedeão ------------------------------------------------------ Lágrima de preta Encontrei uma preta que estava a chorar, pedi-lhe uma lágrima para a analisar. Recolhi a lágrima com todo o cuidado num tubo de ensaio bem esterilizado. Olhei-a de um lado, do outro e de frente: tinha um ar de gota muito transparente. Mandei vir os ácidos, as bases e os sais, as drogas usadas em casos que tais. Ensaiei a frio, experimentei ao lume, de todas as vezes deu-me o que é costume: nem sinais de negro, nem vestígios de ódio. Água (quase tudo) e cloreto de sódio. António Gedeão ------------------------------------------------------ Esta é a Cidade Esta é a Cidade, e é bela. Pela ocular da janela foco o sémen da rua. Um formigueiro se agita, se esgueira, freme, crepita, ziguezagueia e flutua. Freme como a sede bebe numa avidez de garganta, como um cavalo se espanta ou como um ventre concebe. Treme e freme, freme e treme, friorento voo de libélula sobre o charco imundo e estreme. Barco de incógnito leme cada homem, cada célula. É como um tecido orgânico que não seca nem coagula, que a si mesmo se estimula e vai, num medido pânico. Aperfeiçoo a focagem. Olho imagem por imagem numa comoção crescente. Enchem-se-me os olhos de água. Tanto sonho! Tanta mágoa! Tanta coisa! Tanta gente! São automóveis, lambretas, motos, vespas, bicicletas, carros, carrinhos, carretas, e gente, sempre mais gente, gente, gente, gente, gente, num tumulto permanente que não cansa nem descança, um rio que no mar se lança em caudalosa corrente. Tanto sonho! Tanta esperança! Tanta mágoa! Tanta gente! António Gedeão ------------------------------------------------------ Pedra filosofal (re-edição) Eles não sabem que o sonho é uma constante da vida tão concreta e definida como outra coisa qualquer, como esta pedra cinzenta em que me sento e descanso, como este ribeiro manso em serenos sobressaltos, como estes pinheiros altos que em verde e oiro se agitam, como estas aves que gritam em bebedeiras de azul. Eles não sabem que o sonho é vinho, é espuma, é fermento, bichinho álacre e sedento, de focinho pontiagudo, que fossa através de tudo num perpétuo movimento. Eles não sabem que o sonho é tela, é cor, é pincel, base, fuste, capitel, arco em ogiva, vitral, pináculo de catedral, contraponto, sinfonia, máscara grega, magia, que é retorta de alquimista, mapa do mundo distante, rosa-dos-ventos, Infante, caravela quinhentista, que é Cabo da Boa Esperança, ouro, canela, marfim, florete de espadachim, bastidor, passo de dança, Colombina e Arlequim, passarola voadora, pára-raios, locomotiva, barco de proa festiva, alto-forno, geradora, cisão do átomo, radar, ultra-som, televisão, desembarque em foguetão na superfície lunar. Eles não sabem, nem sonham, que o sonho comanda a vida. Que sempre que um homem sonha o mundo pula e avança como bola colorida entre as mãos de uma criança. António Gedeão